Acostumados com
obras realistas, por vezes esquecemos (ou ignoramos) que muitos autores
nacionais também escreveram obras fantásticas
A literatura
brasileira pós-independência (de meados do século XIX até o começo do século
XX) preocupava-se essencialmente em construir uma identidade nacional através
das artes. Em nome desse ideal, visava-se representar as paisagens locais, os
tipos sociais etc. José de Alencar é um dos maiores expoentes da época: sua obra
embarcou desde o período pré-colonial, com a trilogia indianista O Guarani, Iracema e Ubirajara,até a modernidade
dos romances como Senhora,
Lucíola e Diva, passando pela temática
regionalista de O Gaúcho. Por conta dessa obsessão não só
dos autores, mas também da crítica, que valorizava as marcas de nacionalidade
nos livros, muitos contos de caráter fantástico acabaram por ser excluídos do
cânone, o que leva a se pensar que não houve produção significativa do gênero
no Brasil durante esse período, com exceção de Álvares de Azevedo, autor de Noite na Taverna e Macário.
Não parece
inverossímil afirmar que a literatura brasileira tende a seguir uma abordagem
realista até hoje. Não há uma tradição forte do fantástico no país. Porém, o
preconceito em relação ao gênero tende a cair por terra, e os estudos para
resgatar obras esquecidas do passado e promover novos autores na área avançam.
Na coletânea organizada pela Professora Doutora da UERJ Maria Cristina Batalha, O Fantástico Brasileiro: contos
esquecidos, encontramos contos de diversos autores conhecidos, alguns até
mesmo considerados realistas, como Machado de Assis e Aluísio Azevedo. Isso
mostra que autores como Edgar Allan Poe influenciaram também a produção
nacional, ainda que em menor escala.
A tradição de lendas
interioranas brasileiras dá margem a contos de ambientação rural. Causos de
caboclos, histórias de vinganças pessoais ou de assombrações são comuns nas
produções da época. É o caso do esqueleto que atormenta os visitantes em A Dança dos Ossos, de
Bernardo Guimarães e da ameaça aterrorizante dos porcos devoradores de carne em Os Porcos, de Júlia Lopes de Almeida. No
cenário urbano, é mais recorrente a figura do monstro urbano, do sádico ou do
doente, como nos contos da coletâneaDentro da Noite, de João do Rio.
Outra categoria pouco
estudada em nossa literatura é a do gótico. Costuma-se associar o gótico ao
clima sombrio da era vitoriana europeia. O termo, porém, teve sua definição
ampliada ao longo do tempo, estabelecendo a possibilidade de existir mesmo
um gótico tropical. A visão intelectual fin-de-siècle da sociedade é desencantada. A
modernidade trouxe, juntamente com o avanço científico e tecnológico, o caos
urbano, problemas sociais como a violência e a exploração do trabalho. Essa
visão pessimista influenciou autores brasileiros, em cujas obras é possível
reconhecer traços do gótico. Trata-se de uma estética essencialmente negativa,
definida pela ausência de outros elementos, como o belo, a luz, a alegria. A
ambientação é sombria, os personagens monstruosos, cheios de vícios, há a
possibilidade da presença do sobrenatural, de fantasmas (pessoas ou fatos) do
passado que retornam para cobrar uma dívida. Um exemplo é o conto O Espelho, de Gastão Cruls, em que um
casal compra um móvel pertencente a uma ex-prostituta e passa a ser atormentado
pelas imagens dos inúmeros amantes da mulher, trazendo à tona os ciúmes do
marido.
É possível
identificar traços do gótico na literatura nacional até mesmo em obras
clássicas, como Os Sertões,
de Euclides da Cunha. Na análise do Prof. Dr. Júlio França, também da UERJ, são
destacadas passagens de descrições macabras, cruas, sangrentas e assustadoras.
O excesso de sol também remete a um clima sombrio, seco, de natureza selvagem e
povo rude.
Desta forma, obtém-se
um novo prisma em relação à literatura brasileira finissecular, que vai além
dos ideais dos conhecidos movimentos romântico e realista, preocupados com a
representação da identidade nacional. Nossos autores exploraram também
vertentes da literatura fantástica e gótica, adaptando as características
dos gêneros à cultura local.
Referências:
BATALHA, Maria
Cristina (org.). O Fantástico
Brasileiro: contos esquecidos. Rio
de Janeiro: Caetés, 2011.
FRANÇA, Júlio. As
Sombras do Real: a visão do mundo gótica e as poéticas realistas. In: CHIARA,
Ana; ROCHA, Fátima Cristina Dias (org.). Literatura
Brasileira em Foco VI: em torno dos realismos. Rio de Janeiro: Casa Doze,
2015.
Fonte: Homo Literatus
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