Pesquisar este blog

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

A riqueza da Idade Média

A obra A Idade Média e o dinheiro – Ensaio de antropologia histórica, de Le Goff, aborda como as pessoas julgavam a riqueza, o acúmulo e a circulação de metais preciosos no período


Por Mauro Trintade



No primeiro dia de abril, o mundo perdeu um dos maiores especialistas em Idade Média e um dos idealizadores da Nova História, Jacques Le Goff, que teve seu livro A Idade Média e o dinheiro – Ensaio deantropologia histórica lançado no Brasil recentemente. Seus estudos oferecem uma nova visão dessa longa era, muitas vezes reduzida a mero e arrastado interlúdio entre a Antiguidade e o Renascimento, um período de estagnação assolado por bárbaros, peste e fundamentalismo. 


Essa percepção, no entanto, vem mudando e Le Goff ajuda a mostrar que a “Idade das Trevas” foi muito mais, em análises eruditas – e admiravelmente claras. O livro ajuda a corrigir a forma grosseira com a qual aquela era foi tratada desde que Leonardo Bruni a definiu em sua Historiae Florentini populi. Le Goff interpreta o passado não como um cadáver a ser exumado, mas como uma história viva sujeita às mesmas forças humanas que regem o presente. Em seu célebre História e memória (Unicamp, 528 páginas, 2012), ao analisar o trabalho de Marc Bloch e Benedetto Croce, aponta alguns pecados capitais no trabalho histórico, entre eles, “que esse trabalho fosse estritamente tributário da  cronologia: seria um erro grave pensar que a ordem adotada pelos historiadores nas suas investigações devesse necessariamente modelar-se pela dos acontecimentos.” Assim história não é mera narrativa linear dos fatos, mas interpretação e reorganização permanentes do passado em função do presente.

Já saíram pela mesma editora O Deus da Idade Média, Uma longa Idade Média,Uma história do corpo na Idade Média, Em busca da Idade Média, A bolsa e vida,Os intelectuais da Idade Média e São Francisco de Assis. E, em particular, o monumental São Luís, que recuperou a biografia como gênero histórico, retirando-a das páginas de escândalos, calúnias e narcisismo, em um momento em que a história econômica e social se sobrepunha à história política dos tronos e potestades. Também foram lançados aqui Homens e mulheres da Idade Média (Estação Liberdade), Para uma outra Idade Média eHeróis e maravilhas da Idade Média (Vozes).

O escritor francês também é identificado com o que se denominou de Nova História, o momento mais atual do que fi cou conhecido como a Escola dos Annales, movimento historiográfico que, criado pelo próprio Bloch e Lucien Febvre em 1929 com a revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, propôs uma nova atuação da história em colaboração com as ciências sociais, em uma interdisciplinaridade que a afastou da história natural e ampliou seus limites documentais, com elementos da cultura material e imaterial, como a oralidade, as artes e as próprias mentalidades.

A Idade Média e o dinheiro – Ensaio de antropologia histórica revela não apenas a história do dinheiro naquele período, mas como as pessoas julgavam a riqueza, o acúmulo e a circulação de moedas e metais preciosos e como sua abundância – e escassez – foram importantes em determinados momentos da vida social e econômica da Europa. Por exemplo, qualquer leitor eventual pode saber a respeito das críticas à usura feitas pela Igreja na Idade Média e ter os ouvidos acostumados à atividade bancária mantida por negociantes judeus, mas Goff nos alerta que a maioria dos comentários a respeito destes são fruto do antissemitismo do século XIX e carecem de consistência histórica. Muito mais ricas são as relações entre o surgimento do purgatório no pensamento medieval e a aceitação cada vez maior do lucro sobre o dinheiro, isto é, o juro, em uma transformação de valores operada ao longo de séculos. Ele ainda lembra, com pertinência, que a palavra latina ratio é traduzida frequentemente como razão, mas também se refere a cálculo, em uma demonstração de como o conceito de mensuração tornou-se importante na Europa a partir do século XIII.

O historiador observa também que, durante boa parte da Idade Média, a riqueza de um homem não poderia ser medida em dinheiro. O próprio termo seria pouco compreendido naqueles séculos. Moeda, dinheiro e pecúnia estariam mais perto do sentido atual. Terras, homens e recursos eram as medidas de riqueza. Durante toda a Baixa Idade Média a moeda teve pouca circulação. A cunhagem era limitada e a monetarização da vida foi um processo longo, complexo e com vários impulsos históricos, sociais e culturais que dificilmente podem ser analisados em uma única esfera do conhecimento. Daí a força do método da Nova História de Le Goff , que recusa interpretações precipitadas a respeito de acontecimentos, práticas e instituições que tinham um sentido muito diferente há sete ou oito séculos. Para Goff , aliás, há um anacronismo nefasto na historiografia, incapaz de compreender os homens e mulheres da Idade Média como diferentes de nós, assim como aquilo que hoje chamamos de “bancos”, “dinheiro” ou mesmo “economia”.

Na verdade, a economia tal como a entendemos só adquire especificidade a partir do século  VIII. Segundo o historiador austríaco Karl Polanyi, ela estaria até então embutida num labirinto de relações sociais, em um “sistema global de valores da religião e da sociedade cristãs” do qual jamais se emancipou durante a Idade Média. Le Goff se bate contra a tese de que ali já se inoculava o germe do capitalismo, em um simplismo que não dá conta da grandiosidade do período. “A criatividade da Idade Média está em outros pontos”, conclui o historiador.


Nenhum comentário:

Postar um comentário